Peregrinos

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Espiritualidade segundo Marcos - Parte Final




O asceta e o esteta – Bem no centro do evangelho segundo Marcos há uma passagem que pode ser considerada o cerne da espiritualidade do texto e consiste de duas histórias. Na primeira, Jesus chama os discípulos à renúncia, quando eles partem para Jerusalém. É a dimensão asceta da espiritualidade. Já o segundo relato, o da transfiguração de Cristo no Monte Tabor, fornece a dimensão estética dessa mesma espiritualidade. As histórias são cercadas, nas duas extremidades, por afirmações da verdadeira identidade de Jesus como Deus entre nós. Pedro afirma: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. No final, uma voz vinda do Céu declara: “Este é o meu Filho amado. Ouçam-no!”. Era o testemunho humano sendo legitimado pela confirmação divina.
Essas histórias possuem uma conexão orgânica, um ritmo binário e uma teologia espiritual única. Elas reúnem os movimentos ascetas e estéticos, o sim e o não que atuam juntos no coração da teologia espiritual. O ascetismo aparece circunscrito nas palavras do Salvador, que são breves e diretas: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Marcos 8.34). Fica evidente que Jesus vai a algum lugar e nos convida para irmos com ele. É um convite, sim, à renúncia. Sempre há um forte elemento ascético na teologia verdadeiramente espiritual. Seguir Jesus implica em não seguir nossos impulsos, apetites, caprichos e sonhos, pois tudo isso foi danificado pelo pecado. Seguir Jesus significa não seguir as práticas de procrastinação e negação da morte, mesmo em uma cultura que, pela busca obsessiva da vida sob a inspiração de ídolos e ideologias, acaba encontrando uma existência tão restrita e degradada que dificilmente merece o nome de vida. Mas a arte de dizer “não” nos deixa livres para seguir Jesus.
Na monumental obra escrita por Marcos, o esteta aparece ao lado do asceta. É o “sim” de Deus em Jesus. Pedro, Tiago e João o vêem transfigurado na montanha, em uma nuvem brilhante, na companhia de Moisés e Elias. Os discípulos viram a beleza da glória do Senhor, e é ela que acabamos por experimentar ao nos aproximarmos do Pai. Há sempre um componente estético forte na verdadeira teologia espiritual. Subir ao monte com Jesus significa deparar-se com uma beleza de tirar o fôlego. Permanecer na companhia dele é contemplar sua glória e escutar a confirmação divina da revelação nele. Aqui está o segredo do Jesus transfigurado. Ele é a forma da revelação, e a luz não cai do alto sobre essa forma, nem vem de fora – antes, brota de seu interior. A única reação adequada a essa luz é manter os olhos abertos para observar o que está sendo iluminado: adoração.
O impulso estético na teologia espiritual relaciona-se a treinar a percepção, isto é, aprender a apreciar o que está sendo revelado em Jesus. Não somos bons nisso, pois o pecado prejudicou nossos sentidos. O mundo, apesar de alardear a celebração da sensualidade, é implacável em anestesiar e esquecer o que é sentir, restringindo a estética ao que se pode encontrar em museus ou jardins. Nossos sentidos precisam de cura e reabilitação para se tornarem adequados a receber e responder às visões e aparições do Espírito Santo de Deus.Nosso corpo, com seus cinco sentidos, não é empecilho para a vida de fé. Nossa sensibilidade não é barreira para a espiritualidade, e sim, o único acesso a ela.
Marcos escolheu mostrar Jesus como a revelação de Deus e fez um relato completo da sua obra na salvação. Somos convidados a participar por inteiro da história de Jesus, e o evangelista nos mostra como fazer isso. Ele não se limita a contar que Jesus é o Filho de Deus; nem a nos dizer que nos tornamos beneficiários de sua expiação. Ele nos convida a morrer a morte de Jesus e a viver sua vida com a liberdade e a dignidade dos participantes. E eis aqui um fato maravilhoso – ficamos no centro da história, sem nos transformarmos nos seus principais protagonistas. Habitualmente, e os crentes sabem bem disso, sempre é perigoso o interesse do indivíduo em si mesmo.
A obsessão com as questões da alma fazem com que Deus passe a ser visto como mero acessório da experiência pessoal. É preciso muita vigilância – e a teologia espiritual é, entre outras coisas, o exercício dessa vigilância.Por isso o evangelho de Marcos é um texto básico para se entender a espiritualidade humana. Suas histórias sobre vida e morte, crucificação e ressurreição, nos mostram e nos ensinam sobre negação e afirmação. Mas não se limitam a isso. Também levam-nos adiante em fé e obediência, para a vida que só se completa, por fim no não definitivo e no sim glorioso do Jesus crucificado e ressurreto.

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